Especialistas desmentem boatos sobre GPS americano e destacam alternativas já acessíveis ao Brasil

Especialistas desmentem boatos sobre GPS americano e destacam alternativas já acessíveis ao Brasil

Circulam nas redes sociais mensagens alarmistas que sugerem um possível bloqueio do acesso do Brasil ao sistema GPS pelos Estados Unidos, sob eventual influência de um conflito diplomático ou decisão política unilateral da administração de Donald Trump. As narrativas apontam para cenários de colapso nacional: paralisação de 75% da agricultura, falência do sistema bancário e caos na aviação civil. No entanto, especialistas em geopolítica, telecomunicações e defesa afirmam que essas alegações são infundadas, tecnicamente equivocadas e desconsideram as alternativas já disponíveis ao Brasil.

De acordo com análises técnicas, o desligamento seletivo do GPS americano é inviável do ponto de vista técnico e diplomático. O sistema funciona com uma constelação global de 32 satélites e não permite bloqueios geográficos sem consequências colaterais amplas. Um bloqueio ao Brasil afetaria também empresas americanas operando no país e criaria precedentes internacionais que comprometeriam a credibilidade global do GPS — hoje um padrão aceito mundialmente.

A desinformação também alimenta mitos como a suposta cobrança de taxas do Brasil aos EUA pelo uso do GPS. Conforme explicou o divulgador científico Ned Oliveira, o sinal civil do sistema é gratuito e aberto globalmente, e os custos que recaem sobre os usuários dizem respeito ao hardware — como smartphones e chips —, não ao uso do sinal propriamente dito.

Sistemas alternativos e já operacionais

Apesar da real dependência de setores estratégicos brasileiros ao GPS, o país já possui acesso a outros três sistemas globais de navegação por satélite: Galileo (União Europeia), GLONASS (Rússia) e BeiDou (China). Todos são compatíveis com os principais dispositivos utilizados no Brasil, incluindo celulares, drones, tratores e sistemas bancários.

O Galileo, em operação comercial desde 2016, é o sistema europeu de navegação com 26 satélites ativos. Oferece precisão até quatro vezes superior ao GPS, chegando a 20 centímetros no seu serviço de alta precisão (HAS). A maioria dos smartphones modernos vendidos no Brasil já é compatível com esse sistema.

O GLONASS, russo, é subutilizado em termos de conhecimento público, mas é um dos mais relevantes para o Brasil. O país abriga cinco estações terrestres de controle do GLONASS, fruto de acordos de cooperação estabelecidos desde 2013 com universidades federais. Essa infraestrutura permite calibrar os sinais recebidos e aumentar a precisão do sistema em todo o território nacional, tornando o Brasil um parceiro estratégico direto da Rússia nesse setor.

Já o BeiDou, sistema chinês, possui atualmente a maior constelação ativa, com 35 satélites. Opera globalmente desde 2020, com precisão de até 10 centímetros em sua área principal e cerca de 30 centímetros no restante do globo. Além da navegação, o BeiDou oferece funcionalidades como envio de mensagens curtas via satélite, sem necessidade de cobertura celular — recurso útil em zonas remotas ou de desastre.

Dispositivos e compatibilidade múltipla

A maioria dos equipamentos utilizados por brasileiros já possui compatibilidade com múltiplos sistemas GNSS (Global Navigation Satellite Systems). Smartphones Android e iPhones recentes são capazes de captar sinais simultâneos de GPS, Galileo, GLONASS e BeiDou, selecionando automaticamente os mais precisos. Equipamentos agrícolas e industriais fabricados nos últimos anos também seguem essa tendência.

Essa compatibilidade significa que, mesmo em caso de bloqueio do GPS — hipótese considerada remota e autodestrutiva —, os aparelhos poderiam continuar operando normalmente usando os sinais alternativos. Esse fator anula a tese de colapso nacional, ainda que uma transição demandasse adaptações específicas em setores altamente tecnificados.

Dependência real e riscos estratégicos

Embora os riscos de bloqueio sejam mínimos, especialistas alertam que a dependência brasileira do GPS americano revela uma vulnerabilidade maior: a ausência de soberania tecnológica nacional. Setores como agricultura, mineração, petróleo, aviação civil, sistema bancário e telecomunicações utilizam amplamente o GPS para sincronização de dados, navegação e automação.

Durante o 1º Seminário de Segurança, Desenvolvimento e Defesa no Ambiente Espacial, realizado em Brasília em julho de 2025, o coronel da reserva Júlio Shidara, presidente da Associação das Indústrias Aeroespaciais Brasileiras (AIAB), afirmou que o Brasil ainda não possui alternativas nacionais robustas para garantir autonomia nesses setores críticos.

O GPS foi desenvolvido pelos EUA com fins militares e segue operado pelo Departamento de Defesa americano. Apesar de fornecer sinal aberto para uso civil, os EUA mantêm a capacidade técnica de degradação ou bloqueio em caso de conflito — mecanismo já utilizado durante a Guerra do Golfo, em 1991, e em regiões de crise no Oriente Médio.

Transição viável e investimentos possíveis

Setores como o transporte urbano e a navegação automotiva já se adaptariam automaticamente a uma eventual desativação do GPS, graças à compatibilidade com outros sistemas. Aplicativos como Uber e 99 não teriam prejuízos técnicos relevantes. A aviação civil também dispõe de sistemas baseados em múltiplas constelações, embora necessite de ajustes técnicos para uma transição plena.

Já áreas como agricultura de precisão, mineração e o sistema bancário exigiriam modernização de equipamentos, atualização de software e treinamento de operadores. A estimativa é de que a transição total para o uso de sistemas não-americanos levaria entre um e dois anos. O custo projetado para essa modernização varia entre R$ 2 bilhões e R$ 5 bilhões, distribuídos em até dois anos — valor considerado administrável frente ao orçamento setorial e à importância estratégica envolvida.

Caminhos para a soberania tecnológica

A solução definitiva para o risco de dependência passa por investimentos consistentes na construção de capacidades nacionais. Países como China, Índia e União Europeia investiram bilhões em seus próprios sistemas de navegação por satélite justamente para garantir autonomia tecnológica e militar.

A experiência brasileira com o GLONASS demonstra que parcerias estratégicas com potências espaciais podem ser um caminho viável e de resultados práticos. O Brasil poderia ampliar esses acordos e buscar novas alianças com China e União Europeia, incluindo cláusulas de transferência de tecnologia e desenvolvimento conjunto de aplicações industriais.

Especialistas defendem ainda a criação de um programa nacional de desenvolvimento de um sistema de navegação regional, moldado nos padrões do indiano NavIC, voltado inicialmente para o território nacional e América do Sul. O projeto envolveria investimento público, articulação com universidades, cooperação internacional e fortalecimento da indústria nacional de semicondutores e telecomunicações.

Silêncio oficial e risco político

Em meio à disseminação dos boatos e à incerteza gerada nas redes, as Forças Armadas brasileiras não se manifestaram publicamente sobre o tema, o que, segundo especialistas, contribui para o pânico desnecessário. A ausência de comunicação institucional e estratégica também alimenta discursos políticos infundados sobre retaliações americanas ao Brasil.

A análise geopolítica aponta que o real desafio está menos no risco de desligamento e mais na passividade com que o país lida com a sua dependência estrutural em relação às tecnologias espaciais controladas por potências estrangeiras.

Conclusão

O cenário de colapso completo por um eventual bloqueio do GPS americano é tecnicamente implausível e geopolítica e comercialmente suicida para os Estados Unidos. No entanto, a dependência brasileira revela a urgência de uma política nacional voltada à soberania digital e espacial. O Brasil já possui alternativas operacionais — Galileo, GLONASS e BeiDou — e dispositivos compatíveis com esses sistemas. O caminho para a independência passa por investimento estratégico, cooperação internacional e modernização tecnológica.

O pânico é infundado, mas o alerta é válido. O futuro da navegação por satélite no Brasil pode e deve ser plural, soberano e alinhado aos interesses nacionais.

(Com informações de O Cafezinho)

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(Foto de capa: GETTY IMAGES)

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