Em um cenário de profunda diversidade socioambiental, um estudo inédito nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã, estado do Amazonas, tem se debruçado sobre uma questão vital: quais são as causas das mudanças na alimentação em comunidades ribeirinhas da região? Conduzida por uma equipe multidisciplinar ligada à Universidade de Lisboa, à Universidade Federal do Amazonas e ao Instituto Mamirauá, o estudo busca entender os fatores que impulsionam a chamada transição alimentar nesses territórios tradicionais.
A pesquisa, intitulada “Diversidade biocultural alimentar e resiliência: o caso da Amazônia brasileira em transição”, é liderada pela pesquisadora Daiane Soares Xavier da Rosa, doutoranda em Ciências da Sustentabilidade pela Universidade de Lisboa e associada ao Instituto Mamirauá, no Grupo de Pesquisa em Territorialidades e Governança Socioambiental na Amazônia.
Com orientação e apoio de pesquisadores do Brasil e Portugal, o estudo une métodos quali-quantitativos para captar, com profundidade, os hábitos e mudanças no consumo de alimentos em seis comunidades ribeirinhas da região do Médio Solimões e como essas transformações impactam a cultura alimentar, a saúde e a resiliência socioecológica dessas comunidades amazônicas.




Alimentação em mudança
Abrigo de mais de 3 milhões de hectares de floresta tropical, as Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã estão entre as mais importantes áreas protegidas da Amazônia brasileira. Reconhecidas por sua vasta biodiversidade e por serem o território de comunidades tradicionais, essas reservas desempenham papel estratégico na conservação ambiental e no desenvolvimento sustentável da região, frente os efeitos acelerados das mudanças climáticas e o avanço de atividades predatórias de larga escala, como a mineração.
É nesse panorama complexo que a pesquisa busca compreender como essas comunidades têm vivenciado transformações em seus hábitos alimentares.
De acordo com Daiane da Rosa, as comunidades selecionadas para o estudo — três na Reserva Mamirauá e três na Reserva Amanã — apresentam diferentes graus de proximidade com centros urbanos, o que pode influenciar o acesso a alimentos industrializados. Esse é um dos fatores que vem sendo analisado como determinante na transformação dos hábitos alimentares locais.
“Desenvolvemos essa pesquisa em comunidades com diferentes acessos aos centros urbanos e aos supermercados. Estamos investigando como isso pode estar influenciando no consumo de alimentos industrializados, em especial os ultraprocessados”, explica a pesquisadora.
Essa etapa da pesquisa, desenvolvida entre os anos de 2023 e 2024, envolveu questionários aplicados a diferentes perfis dentro das comunidades — líderes comunitários, merendeiras e gestores das escolas, anciãos, cozinheiras (os) e unidades familiares — com destaque para as entrevistas com foco em questões socioeconômicas e na chamada “biografia alimentar”, realizada em cerca de 25% das casas de cada comunidade.
“Este bloco de entrevistas que engloba questões socioeconômicas e de hábitos alimentares durou cerca de 2 horas e nos deu uma grande riqueza de informações. A partir delas, conseguimos entender as decisões alimentares em nível familiar”, afirma.
O desenvolvimento dos questionários e das perguntas que fizeram parte da pesquisa de campo teve como base uma ampla revisão da literatura especializada, realizada pela pesquisadora e co-autores, buscando entender, em nível global, quais são os fatores responsáveis por mudanças na alimentação em povos indígenas e comunidades locais.
Dados censitários das Reservas Mamirauá e Amanã levantados entre 2018 e 2019, pelo Sistema de Monitoramento Demográfico e Econômico (SIMDE) desenvolvido pelo Instituto Mamirauá, também foram utilizados, com o objetivo de selecionar comunidades com o maior número possível de variáveis associadas aos objetivos da pesquisa.
“A revisão de literatura em escala global nos proporcionou entender as transições alimentares em populações tradicionais em nível macro, possibilitando o desenvolvimento de perguntas robustas e que fizessem sentido localmente”, afirma Daiane.
Tradições resistem, mas enfrentam desafios
Entre os resultados preliminares, um dado chama atenção: a base da alimentação ribeirinha nessa região da Amazônia permanece centrada no pescado e na farinha de mandioca, complementada com alimentos in natura e minimamente processados, adquiridos no supermercado No entanto, há indícios de mudanças significativas entre gerações.
Segundo os anciãos e os chefes familiares, os jovens e adolescentes das comunidades consomem mais alimentos ultraprocessados do que os adultos — um reflexo, segundo a pesquisa, da influência crescente da merenda escolar.
“As pessoas que tomam as decisões alimentares, ou seja, o que será comprado no supermercado e servido nas refeições familiares, têm hoje, em média. 40 anos de idade, e seus hábitos estão ligados à cultura alimentar regional, mais tradicional. Entretanto os chefes familiares relataram que os hábitos alimentares de crianças e adolescentes estão cada vez mais voltados para as comidas de supermercado”, observa Daiane.
Em comunidades mais distantes de centros urbanos, especialmente aquelas situadas em áreas de paleovárzea (menos afetadas pelas dinâmicas de secas e cheias dos rios da região), observou-se uma maior diversidade alimentar.
“A agricultura familiar e de subsistência tem um papel essencial. Para além da roça, os alimentos que são plantados nos quintais e nos sítios aumentam consideravelmente a diversidade alimentar. Comunidades em áreas de várzea acabam ficando mais vulneráveis na cheia, e aí recorrem ao supermercado com mais frequência”, destaca.
A merenda escolar como vetor de mudança
O estudo também analisou o papel da alimentação nas escolas e identificou uma alta incidência de ultraprocessados na lista de itens da merenda escolar. Segundo Daiane, essa é uma descoberta significativa no contexto das mudanças alimentares, pois indica que a escola introduz hábitos diferentes daqueles tradicionalmente praticados nas famílias, influenciando o processo de transição alimentar.
“Esses hábitos se estabelecem. As crianças aprendem a comer de determinada forma na escola e levam isso para casa, influenciando, inclusive, a alimentação do restante da família. É um ciclo de transformação que está em processo”, observa a pesquisadora.
Os chamados alimentos ultraprocessados são formulações industriais feitas majoritariamente de substâncias extraídas ou derivadas de alimentos, como óleos, gorduras, açúcares e aditivos químicos, com pouco ou nenhum alimento in natura em sua composição. Produtos conhecidos das prateleiras de supermercados como refrigerantes, biscoitos recheados, embutidos, carnes enlatadas, salgadinhos e refeições prontas, associados a diversos problemas de saúde, como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares.
De acordo com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP), referência internacional no tema, o consumo crescente desses produtos está diretamente ligado à perda de práticas alimentares tradicionais e ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis.
Olhar para o passado para entender o presente
Outro eixo da pesquisa envolveu conversas com os anciãos das comunidades, que ofereceram um panorama histórico da alimentação local. Esses relatos revelaram que os primeiros contatos com alimentos industrializados remontam ao início do século XX, por meio dos regatões — grandes embarcações que circulavam nos rios da região vendendo e trocando alimentos industrializados tais como café, açúcar, bolachas e manteiga, por alimentos e produções locais.
Segundo a pesquisadora, esta pode ter sido uma época em que a primeira onda de mudanças alimentares ocorreu na região, partindo de uma dieta majoritariamente in natura e processada localmente (como a farinha de mandioca, bolos de massa e tapioca), para uma alimentação incluindo itens alimentares minimamente processados. A partir desse momento na história recente da região, itens como o café, o açúcar e o arroz começaram a se fazer presentes e se tornar parte da mesa de famílias ribeirinhas.
Essa memória viva tem sido essencial para entender como as populações ribeirinhas vêm adaptando suas práticas alimentares diante de mudanças econômicas, ambientais, sociais e culturais.
Oficinas de devolutiva às comunidades: do conhecimento à ação
Como parte do compromisso ético com as comunidades envolvidas, a equipe da pesquisa promoveu, no primeiro semestre de 2025, oficinas de devolutiva em cinco das comunidades participantes: Ubim, São João do Ipecaçu, Jubará, Ponto X e São Francisco do Aiucá. Nelas, os resultados preliminares da pesquisa foram apresentados de forma acessível, acompanhados de atividades de educação e sensibilização alimentar.
“Percebemos, a partir das interações com as comunidades, que existe uma carência muito grande de informação sobre alimentação e saúde. Por isso, a devolutiva se tornou também uma oportunidade de informar essas pessoas para que possam fazer melhores escolhas alimentares no dia a dia”, diz Daiane.
Durante as oficinas, os moradores aprenderam a interpretar rótulos de alimentos, identificar ingredientes nocivos à saúde e entender os impactos para a saúde do consumo de ultraprocessados. A iniciativa foi bem recebida pelos participantes, que destacaram a importância de levar esse conhecimento para as escolas e para o cotidiano familiar.
“Hoje em dia, percebemos que muita gente vem se alimentando de forma desregrada. Foi muito importante que o projeto trouxe informações práticas, para a gente aplicar na escola e em casa também”, afirmou o professor Elionaldo Costa, da comunidade São Francisco do Aiucá.
Alessandro Brandão, professor de História na mesma comunidade, refletiu sobre como conteúdo das oficinas pode ser utilizado em sala de aula. “Na escola, eu vou fazer esse papel de abordar questões alimentares, que foram utilizadas pelos nossos antepassados, e hoje estão se perdendo. Essas informações nos ajudam a elaborar conteúdos educativos para o resgate da nossa cultura, que é indígena, inclusive na alimentação”.
Alaíde Bezerra é uma das moradoras mais antigas da comunidade Jubará, na Reserva Mamirauá. Com mais de 6 décadas de vivência e conhecimento do território, durante a oficina, ela compartilhou a memória de tempos antigos da alimentação local, com uma dieta mais farta e composta de alimentos colhidos da terra. “Na minha vida, eu bebi muito tacacá, mingau de banana, mingau de massa com castanha, mingau de farinha com leite de sova. Eu comi muito michuá naquele tempo, frito, com café”.
Já a estudante Rayara Souza, de 15 anos, relatou que ficou impressionada com as informações aprendidas na oficina. “Eu fiquei muito chocada com algumas coisas, como pode um só alimento conter tantas substâncias, algumas que até podem fazer mal pra gente? Foi legal entender como a alimentação está mudando, e isso me deu até ideias para o futuro, do que eu quero fazer daqui pra frente”, contou.
O jovem Yuri Pereira, de 21 anos, morador da comunidade Ubim, também destacou o quanto a oficina foi transformadora: “A gente achava que as coisas industriais, que eram gostosas, não faziam tanto mal como as coisas naturais que a gente tem aqui na nossa comunidade mesmo”, conta. “Uma das coisas também que eu aprendi, que acho que vou levar para o resto da minha vida, é sobre o ‘T’ das embalagens, de transgênico, que é uma mistura. Como na lata de milho, que é diferente de um milho natural, plantado na comunidade”.
Um olhar sobre o futuro
Ao fim da pesquisa, a equipe espera desenvolver um índice de diversidade biocultural alimentar — uma ferramenta que poderá indicar o grau de resiliência das comunidades diante das mudanças alimentares. A intenção é que esse índice sirva tanto para análises acadêmicas quanto para a formulação de políticas públicas voltadas à segurança alimentar e à saúde das populações tradicionais.
Com uma abordagem que une ciência, tradição e participação comunitária, o estudo pretende contribuir para um debate global sobre os impactos das transições alimentares — e o que elas significam para a cultura, a saúde e a sustentabilidade das comunidades tradicionais, na Amazônia e além dela.
O estudo é uma parceria entre a Universidade de Lisboa, através do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c) da Faculdade de Ciências e do Instituto de Ciências Sociais, o Grupo de Pesquisa em Territorialidades e Governança Socioambiental na Amazônia do Instituto Mamirauá, e o Grupo de Pesquisa RESILIDADES da Universidade Federal do Amazonas.
Sobre o Instituto Mamirauá
O Instituto Mamirauá é uma unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), voltada à conservação da biodiversidade e à melhoria da qualidade de vida das populações amazônicas, com atuação direta em pesquisa, desenvolvimento sustentável e apoio a políticas públicas na região.
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