Considerado o último igarapé limpo e preservado da área urbana de Manaus, uma cidade cortada por pequenos cursos d’água, a maioria poluídos ou aterrados, o igarapé Água Branca, localizado no bairro Tarumã, na zona oeste da cidade, sofre com os impactos causados pelo avanço da urbanização, do desmatamento e da poluição.
Ameaçada por vários empreendimentos comerciais e residenciais, devido à falta de compromisso do poder público com o meio ambiente, há décadas a microbacia do igarapé é degradada em suas nascentes. Elas abastecem com água fria e limpa a bacia hidrográfica do rio Tarumã-Açú, altamente poluída porque recebem água também dos igarapés da Ponte da Bolívia, Cachoeira Baixa, Cachoeira Alta e Cachoeira das Almas, todos tomados por lixo e esgoto.
“Pesquisas apontam que a microbacia do Água Branca vem sendo impactada de forma ascendente desde 1986. Dessa forma, as nascentes sofrem degradação, principalmente devido ao desmatamento que ocorre na região”, afirma a pesquisadora Solange dos Santos Costa, professora do Departamento de Geociências da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Segundo ela, o igarapé é impactado por obras de todos os tipos de segmentos. No setor imobiliário, há loteamentos de áreas para condomínios residenciais. No ramo comercial, houve a construção de hotéis e shoppings, além da duplicação da avenida do Turismo, que desmatou uma extensa área, prejudicando o Água Branca.
A série de impactos ambientais se estende por toda a região, que é área de proteção ambiental (APP), destaca o jornalista e ativista ambiental Jó Farah, morador do Tarumã. “Estão construindo um condomínio ao lado da Cachoeira Alta do Tarumã, um enorme conglomerado de prédios, onde passa o corredor das cachoeiras Alta e Baixa. A obra destruiu a foz do igarapé Água Branca, que está quase toda soterrada. Isso indica que o empreendedor avançou muito além daquilo que ele recebeu como licença”, lamenta.
O ativista ressalta que nos locais de proteção ambiental é proibida a instalação de indústrias e empreendimentos comerciais sem os estudos adequados. Para Farah, essa análise é feita superficialmente. “O estudo dessas áreas não é feito da forma que deveria e as obras acabam impactando e transformando esses desmatamentos em desastres ambientais. Essas licenças dão oportunidade ao empresário para avançar além daquilo que o órgão previu. Em 90% dos casos é assim”.
No dia 15 de fevereiro, a Prefeitura de Manaus informou a interdição de mais uma das obras que devastam o igarapé. A construção de um empreendimento de dois andares, licenciado pelo Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb), desmatou parte da área de proteção na avenida do Turismo e soterrou com barro uma das nascentes do igarapé.
“A draga [da obra] empurrou tudo para dentro da nascente e está lá até hoje, não conseguimos tirar o barro que a empresa deixou. A mitigação tem que ser feita por essa empresa que causou o dano”, denuncia Farah.
Em nota, a prefeitura declarou que a licença concedida à obra pelo Implurb atendia a legislação em vigor, os parâmetros urbanísticos e a documentação pertinente exigida, incluindo a Licença Municipal de Instalação (LMI), da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Mudança do Clima, contendo 20 medidas de condição e restrição. O órgão afirmou que os critérios para aprovação e licenciamento seguem a legislação urbanística e que as transgressões apontadas sobre a supressão vegetal e assoreamento do igarapé, além do impacto na APP, são de responsabilidade do empreendedor e do construtor.
A obra, que foi denunciada pelas redes sociais da ONG Mata Viva, cobriu de lama todo o trajeto da nascente do igarapé após o desmatamento. Sem nenhuma ação concreta dos órgãos ambientais e com as chuvas que atingem a cidade nos últimos dias, o assoreamento só piora. O acúmulo de sedimentos como areia, terra e lixo é levado até o leito do curso d’água em um processo natural, mas que pode ser intensificado pela ação humana, como no caso em que tiram árvores de uma encosta e o solo fica exposto.
“Aquele local já era desmatado, mas ali tinha uma vegetação baixa que protegia para que o barro não descesse para dentro da nascente. Como sai uma licença sabendo que ali embaixo tem uma APP?”, indaga o ativista ambiental.
Questionada pela Amazônia Real, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Mudança do Clima não explicou o motivo de ter licenciado a obra na área de proteção, alegando que “a ocorrência não é rotina, pois não foi dada autorização para intervenção em área de preservação”.
Também não respondeu como o órgão vai lidar com os impactos no igarapé e com as ameaças que o cercam. Em resposta, afirmou apenas que não permite obras em igarapés e nascentes e que há o estrito cumprimento das faixas de preservação.
Sobre a existência de projetos e ações para proteger e preservar os igarapés e nascentes do Tarumã e da cidade de Manaus, a secretaria disse estar em tratativas para definir um ordenamento da bacia hidrográfica do Água Branca. “Este será o critério de atenção da Semmasclima para os demais igarapés da área urbana de Manaus”, declarou o órgão ambiental.
Animais e floresta podem desaparecer
No Água Branca, peixes como matrinxãs, traíras, bagres, carás, sardinhas e jaraquis crescem até migrar para os rios. A redução do volume de água causado pelo soterramento da nascente, principalmente na época de estiagem, pode provocar o assoreamento da rede de drenagem e, consequentemente, a extinção dessas populações aquáticas. Outro impacto é a supressão da mata ciliar, vegetação florestal nativa que fica às margens de rios, igarapés, lagos, olhos d’água e represas.
“Todo o ecossistema será impactado, ou seja, tanto os componentes bióticos como os organismos vivos: plantas, animais e micróbios e os componentes abióticos, elementos químicos e físicos, como o ar, a água, o solo e minerais”, explica a pesquisadora Solange dos Santos Costa.
A destruição recorrente no Água Branca pode ocasionar o desequilíbrio do ecossistema e o aumento da temperatura, que está associado ao desmatamento da região. “Com a supressão da vegetação, envolvendo a mata ciliar, o processo de erosão e intemperismo é acelerado, causando não somente o assoreamento da rede de drenagem, mas também a compactação do solo e impactando diretamente na seca das nascentes”, ressalta a pesquisadora.
O entorno do igarapé abriga também populações de animais terrestres que estão ameaçadas, como o sauim-de-coleira, animal símbolo de Manaus. O ativista Jó Farah afirma que o pequeno primata está sendo soterrado junto com a nascente, devido aos desmatamentos e poluição.
“Com essa destruição, o sauim-de-coleira leva anos para mapear o seu caminho e fazer uma nova estrada para buscar alimento, proteção e lugar para dormir. Quando você corta essa estrada no meio é como se cortassem todas as estradas e tivessem abismos para chegar na sua casa. Esse animal representa exatamente essa catástrofe que a cidade vive por falta de respeito com os fragmentos florestais urbanos e com os animais que vivem neles”, denuncia o ativista.
No igarapé Água Branca vive ainda o tamanduaí, menor e menos conhecida espécie de tamanduá do mundo. É um animal de aparição rara, por possuir hábitos noturnos. “Ele está perdendo seu habitat e corre o risco de desaparecer dessa região”, diz Jó Farah.
Luta pela preservação
Criado em 2018, o Projeto Trilha Ecológica Igarapé Água Branca trabalha com professores e alunos da rede pública a valorização do único igarapé vivo da cidade. Por meio de visitas guiadas no local, considerado um laboratório ecológico a céu aberto, mais de 200 alunos, principalmente os que moram perto de igarapés poluídos, já tiveram a oportunidade de conhecer o Água Branca e compreender o que é preciso fazer para que um igarapé não morra.
Jó Farah diz lutar pela vida do Água Branca porque as crianças dependem dele para voltar para as comunidades delas e replicar essa informação de preservação e lutar contra o lixo, contra a ocupação irregular, contra a falta de tratamento de esgoto.
A degradação causada no igarapé já foi levada à Justiça várias vezes. No dia 21 de fevereiro, Jó Farah defendeu, durante sessão na Câmara Municipal de Manaus, o desmatamento zero no Tarumã por pelo menos quatro anos. Para ele, é preciso proibir a emissão de novas licenças para qualquer área do Tarumã.
Segundo o ativista, a região precisa de um plano diretor para fazer com que os limites da área de proteção ambiental sejam respeitados. “Não se trata só do Água Branca, a luta maior é pelo rio Tarumã-Açu, que recebe o vômito de água podre de dezenas de igarapés. Essas obras ameaçam a existência do igarapé porque ele pode ser aterrado em todas as suas nascentes e daqui a pouco a gente não vai mais ter água”.
Por Nicoly Ambrosio – Agência Amazônia Real.
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